
Desde que se mudou de São Paulo para Londres, há oito anos, o analista de suporte paulista Igor Carvalho, de 41, nunca decorou seu novo número de celular. As facilidades do smartphone e a possibilidade de consultar qualquer informação na palma da mão, em segundos, não exigem grandes esforços da memória. “O celular não impacta minha capacidade de concentração, mas sim, de reter informações e memorizar o que é importante. Comecei a terceirizar tudo no bloco de notas do aparelho”, comenta. Outra dificuldade é lembrar nomes de filmes, livros, música e autores. E também datas de aniversário importantes. Além do Google, os assistentes de inteligência artificial têm contribuído com essa terceirização. “Ano passado li muito, com prazer, mas meses depois, já esquecia trechos ou a história. Quando quero me lembrar, faço uma pergunta direcionada para a IA.”
Embora seja uma facilitadora de tarefas e ajude a aumentar a produtividade, a IA se tornou a vilã da memória e de processos criativos, diminuindo a capacidade cognitiva. E essa “maldade” tem nome: é o sedentarismo cognitivo. O que acontece com o cérebro quanto tudo ao redor requer cada vez menos esforço mental? “Exigir tudo da IA segue uma neuroplasticidade adaptativa sem ativar as áreas da memória com a mesma regularidade, tornando-as mais fracas com o tempo”, diz o neurologista Sergio Jordy, membro da Academia Americana de Neurologia. “A diminuição da atenção, a menor capacidade criativa e a falta de resolução de problemas por nós mesmos representa maior risco de desenvolvermos demência.”
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O analista de suporte Igor Carvalho, de 41 anos — Foto: Arquivo pessoal
E é preciso mesmo muita atenção para não abandonar a rotina “fitness” do cérebro. Segundo estudo feito pelo Google em parceria com o instituto de pesquisa Ipsos, o Brasil está acima da média mundial no uso da IA. E caso você seja fã incondicional do ChatGPT, cuidado. Pesquisa recente do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) indica que os usuários de ferramentas do tipo tendem a apresentar desempenho inferior nos níveis neural, linguístico e comportamental. “Percebo que as pessoas não sabem mais escrever a lápis, não têm mais coordenação motora para isso. Só digitam e ainda há o corretor ortográfico completando as palavras. É preciso parar de ‘subcontratar’ a IA para fazer as funções do nosso cérebro”, comenta a psicóloga Rejane Sbrissa.
A atriz e professora de biologia Carol Mattos, de 33 anos, é adepta, com parcimônia, do ChatGPT, “Quando começo a escrever sozinha, vou no embalo, mas tenho dificuldades. A IA ajuda muito, mas não uso o texto ‘cru’”, avisa. Além da escrita com o auxílio da tecnologia, Carol também lança mão de aplicativos de localização e transporte, o que a faz ter dificuldade para memorizar caminhos e ruas frequentes. “O que era corriqueiro na minha infância. Hoje, isso não é mais necessário, e penso como será para as novas gerações.”
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A atriz e professora de biologia Carol Mattos, de 33 anos — Foto: Arquivo pessoal
Inimiga ou não, à IA é impossível delegar aquilo que nos torna humanos: o pensamento, a criatividade, o erro. “A grande questão é o quanto seremos capazes de usar as ferramentas com inteligência”, comenta o consultor e escritor André Carvalhal. Para ele, se antes havia o medo de a IA roubar nosso trabalho, hoje tememos o roubo do nosso lazer, dos nossos amigos e da nossa distração. “Elas estão se aperfeiçoando em ritmo acelerado. E tem quem não pare de usar até para elaborar uma pergunta ou escrever um e-mail. Isso é um problema”, continua Carvalhal. Mas há solução, ainda que você continue o melhor amigo de gadgets e IAs. “Ative sempre uma atividade cognitiva, como aprender algo novo, ler, escrever e brincar com jogos que exijam o raciocínio. A meditação e a atividade física, aliada às interações sociais, são extremamente benéficas”, finaliza o neurologista Sergio Jordy
Afinal, o novo sempre vem. Mas pode ser melhor.